O presente artigo traz algumas reflexões sobre a aplicação da Lei Geral de Proteção de dados no âmbito das serventias extrajudiciais (cartórios) e traz, ainda, questões pontuais acerca da regulamentação da matéria no Estado de São Paulo.
I – Introdução
Recentemente, como tem sido amplamente noticiado, entrou em vigor a Lei nº 13.709/18, a chamada Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A LGPD estabelece sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive aqueles nos meios digitais. Ela estabelece sobre o tratamento desses dados por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, objetivando principalmente proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.
A LGPD traz, grosso modo, um regulamento de como esses dados pessoais obtidos por essas pessoas (empresas, bancos, clínicas médicas, órgãos do governo, etc) devem ser tratados, de forma a conservar a intimidade da pessoa sem denegrir sua imagem (falando especificamente dos chamados dados pessoais sensíveis). Assim, aos que descumprirem a lei há sanções, como o pagamento de indenização.
A LGPD classifica esses dados de maneiras distintas. Destacam-se, desta forma, os dados pessoais (informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável) e os dados pessoais sensíveis (esses, relativos a origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, relativo à saúde ou à vida sexual).
A Lei conceitua, ainda, alguns personagens. A exemplo do controlador e do operador. O primeiro, é a pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais (art. 5º, VI); o segundo é a pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, que realiza o tratamento de dados pessoais em nome do controlador (art. 5º, VII).
A Lei cria, ainda, a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), Órgão da Administração Pública Federal, integrante da Presidência da República (art. 55-A). Dentre as competências da ANPD destacam-se zelar pela proteção dos dados pessoais e elaborar diretrizes para a Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade.
II – A LGPD e os Cartórios
Pois bem. Vista esta questão, passa-se a esclarecer que dentro dos conceitos acima pode-se dizer que se inserem as Serventias Extrajudiciais (os cartórios). Justamente por este motivo, deve-se compreender que os titulares dessas serventias (os titulares dos cartórios) estão obrigados a respeitar a LGPD.
Em razão disso, a Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, em tempo, regulamentou a aplicação da LGPD nos cartórios através do Provimento nº 23/2020, que “dispõe sobre o tratamento e a proteção de dados pessoais pelos responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro de que trata o art. 236 da CF […]”.
Inclusive, em um dos “Considerandos” do Provimento, se estabelece que os “responsáveis pelas delegações” dos Cartórios são “controladores de dados pessoais”.
III – Como conciliar a LGPD com a publicidade dos Cartórios?
Após a conclusão acima, passa-se a tratar especificamente sobre como se poderia aplicar, efetivamente, a LGPD nos Cartórios. A questão não é simples, pois se de um lado a LGPD protege a utilização de dados dos titulares, de outro lado existe todo um sistema que privilegia a publicidade de atos. Desta forma, algumas reflexões merecem destaque.
Inicialmente, como seria conciliado o art. 17 da Lei nº 6.015/73 (Art. 17. Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido.) com a LGPD, uma vez que o regime das certidões é público? Neste caso, se aplicariam as regras da LGPD, como a de seu art. 7º, que prevê hipóteses específicas para o tratamento de dados pessoais?
Outro questionamento seria em como conciliar a aplicação do Provimento nº 61 do CNJ (que estabelece a obrigatoriedade de informações e dados necessários à completa qualificação das partes nos requerimentos para a prática de atos nos cartórios) com as regras trazidas pela LGPD. Imagina-se que não mais seria possível que o titular apresentasse informações sensíveis não previstas em Lei.
Além disso, outra questão de ordem prática é com relação às certidões obtidas no Registro Civil de Pessoas Naturais (nascimento, casamento e óbito). Uma vez que toda a informação trazida nessas certidões é de natureza pessoal, como seria concretamente a aplicação da LGPD?
Há, ainda, outra colocação a ser feita especificamente quanto aos cartórios de protestos. É sabido que os Cartórios de protestos, com os Provimentos 86 e 87 do CNJ, podem intimar eletronicamente os devedores para a cobrança. E na prática muitas vezes esses cartórios contratam serviços de terceiros para obter informações desses devedores. Essas informações se enquadrariam na LGPD? Como seria tratada essa questão?
Mais um ponto diz respeito ao compartilhamento do cartão de autógrafos, regra trazida pelo art. 18, §1º do Provimento nº 100 do CNJ. Segundo a norma, o tabelião de notas pode compartilhar o cartão de autógrafos através de e-mail. Seria essa modalidade de compartilhamento adequada, agora tendo em vista a entrada em vigor da LGPD? Não haveria, aí, certa fragilidade no manejo das informações dos interessados?
As reflexões são necessárias, uma vez que o regime que trata das serventias extrajudiciais é todo voltado a dar publicidade aos dados, às informações. De outro lado, a LGPD entra em vigor conferindo privacidade a esses dados, inclusive com sanções pelo descumprimento da lei.
Em seguida, passa-se a tratar da regulamentação da matéria no Estado de São Paulo.
IV – A regulamentação do Estado de São Paulo
Sem pretender esgotar o tema, passa-se a tratar somente de algumas questões pontuais acerca da regulamentação paulista diante da LGPD.
Uma das questões a serem tratadas é com relação a obtenção de certidões nas Serventias Extrajudiciais, com a redação do item 144 do Provimento nº 23/2020, cujo texto é:
Para a expedição de certidão ou informação restrita ao que constar nos indicadores e índices pessoais poderá ser exigido o fornecimento, por escrito, da identificação do solicitante e da finalidade da solicitação
Para efeitos de emissão de certidão pela serventia, o regulamento não obriga necessariamente que a Serventia exija o fornecimento da identificação por escrito do solicitante ou a finalidade da solicitação, uma vez que se utilizou da palavra “poderá”. Sendo, portanto, uma faculdade da Serventia Extrajudicial.
Outra questão é com relação ao tratamento dos dados pessoais destinados à prática dos atos nas serventias, que independe de autorização específica da pessoa natural que deles for titular (item 131 do Provimento nº 23/2020), indo de encontro com o previsto no art. 7º, I da LGPD, que exige o fornecimento de consentimento pelo titular. Neste ponto, entendemos que andou bem a regulamentação estadual, uma vez que mencionado consentimento estaria implícito no ato praticado. Mesmo porque o art. 11, II, da LGPD não exige o consentimento do titular em hipóteses como esta.
Ainda, dentre as questões trazidas pelo Provimento Estadual está a possibilidade de os titulares das serventias extrajudiciais nomearem operadores não integrantes de seu quadro de prepostos, desde que na qualidade de prestadores terceirizados de serviços técnicos (item 132). No entanto, deve-se lembrar que mesmo com essa nomeação, os titulares das serventias continuam responsáveis pelo cumprimento do correto tratamento de dados pessoais nas serventias (item 132.3).
Para efeito de aplicação da LGPD, cada serventia manterá, ainda, dentro de seus quadros, um encarregado que atuará como canal de comunicação entre o controlador e os titulares dos dados e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) (item 133).
V – As Centrais de Serviço e a LGPD
Ultrapassadas as questões acima, uma questão delicada é sobre as Centrais de Serviço, a exemplo do SREI (Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis). A ferramenta tem como objetivo facilitar o intercâmbio de informações entre os Ofícios de Registros de Imóveis, o Poder Judiciário, a Administração Pública e o público em geral.
Em se tratando de uma Central que se utiliza de informações (dados), como ficaria a questão da LGPD no manuseio dessas informações? A questão, mais uma vez, não é simples. Isto porque, a depender de como a questão for tratada o próprio serviço das Centrais é inviabilizado. Portanto, somente a título de reflexão sugere-se que o primeiro passo é definir a natureza jurídica das Centrais, para só então verificar como a LGPD a elas se aplicaria. A questão não é simples e não será aprofundada aqui.
VI – Conclusão
Com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, os titulares das Serventias Extrajudiciais estarão diante de novos desafios e a necessidade de inúmeras adequações. É fato que o Estado de São Paulo saiu na frente com a edição do Provimento nº 23/2020. No entanto, apesar do provimento Estadual, muitas questões ficaram sem solução.
Lembrando que a questão, até então, somente foi regulamentada no Estado de São Paulo. No restante do território nacional a questão ainda está no limbo.
Assim, visando conciliar a LGPD com o regime jurídico das Serventias Extrajudiciais, é mais que necessário que haja uma regulamentação nacional por parte do Conselho Nacional de Justiça.